Não sei se por falta de tempo, de vontade ou de incapacidade, passou muito tempo sem que abrisse novamente esta janela. Talvez porque, por estes dias, sobre pouco poderia escrever com sentimento verdadeiro… Talvez o meu mal-estar geral que me acompanha há alguns meses e que leva a duvidar da génese do problema, talvez da minha nova vida com uma mulher que adoro e me faz muito feliz, talvez da nova casa…
Não! Certamente escreverei sobre a minha avó, que impotente, vi partir tão recentemente. Recente demais para que consiga falar disso mais abertamente, até porque acho que ainda não consegui chorar tudo o que tenho para chorar por ela. Nessa altura estava demasiado preocupado com a minha saúde e deixei-a ir sem que me tivesse despedido.
Na verdade, acho que nunca me despedi verdadeiramente dela. Em nenhum dia, em nenhum beijo. Nunca falámos muito sobre sentimentos mais íntimos, mas sabíamos o que cada um era para o outro. Eu idolatrava-a e respeitava-a. Fazia de tudo para lhe agradar. Por seu lado, ela ajudava-me a esconder dos meus pais as transgressões, as calças e sapatos sujos de lama e pó e mais tarde as noitadas, as bebedeiras.
Era uma mulher ímpar de honestidade de protecção à família, que defendia com acirradas unhas e dentes. Trabalhava muito… se há sítio onde me consigo recordar bem da minha avó (embora não seja preciso fazer grandes esforços) esse sítio é agarrada a um tanque a esfregar roupa suja.
E de repente transformava a garra com que lavava e estendia uma roupa e passava a ferro outra, num talento sublime para fazer sopas com as quais me deliciava. De todas talvez a sopa de favas e a sopa de feijão com batatas me deixem mais saudades. Raio de habilidade que nunca ninguém na família conseguiu aprender.
E vivemos muito um com o outro. Ela gostava que eu fizesse a minha vida em Dois Portos, a terra dela, que sem euforias sempre defendeu e onde sempre gostou de estar. Lá me ia dizendo, desejosa que eu não o fizesse, “ a tua terra não é cá, devias ir para a tua casa”. Era uma mulher que sabia ser politicamente correcta e não queria que a minha mãe pensasse que me incentivava a não ir para casa.
Eu adorava (e adoro) passar os dias nessa “minha aldeia”, na terra da minha avó! Ela preparava-me o almoço, o jantar, a cama… eu passava por casa de vez em quando. Eu sentia que ela estava ali. Ela sabia que eu estava por ali. Estávamos os dois acompanhados. E nem precisávamos de falar muito sobre estas questões. É engraçado como nos compreendemos sempre muito bem. Como nos entendemos muito bem. Não me lembro da minha avó ter alguma vez ralhado comigo a sério. Não me lembro de alguma vez ter ficado aborrecido com ela por sentir alguma injustiça.
E era assim a nossa relação. Sentia-me bem por ali. Mesmo depois do meu pai regressar “à base” após um casamento falhado, foi sempre à minha avó que prestei contas. De onde vinha, para onde ia… era a ela que devia obediência e respeito e não a mais ninguém.
E porque lhe devia esse respeito abri esta janela, só para lhe enviar um beijinho, com a esperança de ouvir um trémulo, cansado e quase imperceptível “ obrigado”, como disse da última vez que eu a vi. Aí dir-lhe-ei, como lhe disse dessa vez, “ obrigado, nada…e não te esforces mais que eu já percebi”.
Afinal sempre foi assim, sempre nos percebemos muito bem sem ser preciso falar muito. E fecho com uma convicção, não foi a vida que a esgotou, mas, à boa maneira de uma mulher única de força e perseverança, foi ela que esgotou a vida.
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